A face da crise climática é feminina em Moçambique
O impacto da crise climática não é o mesmo para todos, conheça mulheres moçambicanas que sobrevivem na linha de frente das mudanças climáticas.
MAPUTO, Moçambique - O impacto devastador da crise climática atinge Moçambique todos os anos com intensidade, trazendo uma série de ciclones e tempestades catastróficas. Desde 2018, o país foi impactado por dezesseis ciclones e tempestades tropicais. Este ano, o Ciclone Freddy atingiu o país duas vezes, devastando amplas áreas nas regiões centro e sul e afetando a vida de mais de um milhão de pessoas.
No entanto, o impacto da crise climática não é sentido de forma igual em todo o mundo. A face da da crise climática é feminina já que os desastres tendem a agravar as desigualdades pré-existentes, em particular no sul da África.
As mulheres, que representam mais da metade da população de Moçambique e frequentemente são responsáveis pelo cuidado de suas famílias e comunidades, são desproporcionalmente afetadas pelos efeitos dos eventos climáticos extremos.
Estudos indicam que desastres têm um impacto desproporcional nas mulheres, afetando mais sua expectativa de vida, oportunidades de emprego, geração de renda, assim como a perda relativa de ativos e meios de subsistência.
Mulheres e meninas têm 14 vezes mais chances de morrer em um desastre do que os homens; mulheres têm 80% mais chances de serem deslocadas por desastres climáticos, perderem suas casas e meios de subsistência, e enfrentam mais riscos de sofrer violência de gênero.
A resiliência do povo de Moçambique - em particular, de suas mulheres - é testada repetidamente, enquanto elas lutam para reconstruir suas casas e comunidades ano após ano.
O Programa Mundial para a Alimentação (PMA) conversou com algumas das mulheres que enfrentaram os impactos do ciclone Freddy este ano. A situação de Moçambique é um lembrete contundente da urgência de ações para apoiar mulheres e comunidades a construírem resiliência aos impactos da crise climática.
Glória Chichume
"Agora eu não tenho mais esperanças ou sonhos na minha vida. A vida é apenas acordar e esperar o dia passar".
Gloria e seus cinco filhos perderam tragicamente a casa para o ciclone Freddy e as cheias. Depois de um dia de caminhada, a família encontrou refúgio na comunidade de Mbuvane, situada em uma área mais elevada e longe da água.
No entanto, Mbuvane em si é de difícil acesso. Apesar de estar a menos de 100 km da cidade de Vilanculos, na província de Inhambane, chegar à comunidade é uma jornada perigosa que pode levar mais de oito horas em um carro 4x4. Nas semanas seguintes à passagem do ciclone, a estrada continuou repleta de buracos cheios de água, grandes o suficiente para engolir um carro inteiro, tornando extremamente difícil a chegada da assistência humanitária a essa comunidade isolada.
Enquanto Glória nos mostrava seu milho e amendoim estragados, ela dizia que toda a sua produção de alimentos havia sido destruída pelo ciclone Freddy. "Plantei o milho e amendoim em dezembro, estava pronto para colher quando o ciclone veio. Agora o pouco que consegui colher está podre, não consigo cozinhar nem uma refeição com isso," diz ela.
Sua colheita não foi único bem perdido. A tempestade destruiu a casa que Gloria havia construído com os filhos e a ajuda de parentes, deixando a família completamente sem abrigo. "Perdi minha casa e tudo dentro dela. O teto voou. Só consegui pegar algumas roupas e escapar com meus cinco filhos", diz Glória.
Mais de dois meses após a passagem do ciclone em sua vila, deslocada, a família de Gloria dormia ao ar livre em uma esteira de palha no chão embaixo de uma árvore. Quando chovia, a família toda tinha que subir em uma árvore para esperar a chuva passar. Nas noites mais quentes, a luta era contra os mosquitos e o risco de malária.
Os parentes de Gloria compartilham os restos da pouca comida que conseguiram salvar durante as inundações, mas todos estão lutando por sobrevivência.
"Eu estou dividindo as pequenas porções de farinha de milho e arroz que minha família compartilhou comigo para durar mais tempo. Estamos comendo bem menos do que estamos acostumados", diz Gloria.
No dia em que a conhecemos, Gloria recebeu sua primeira cesta de alimentos do Programa Mundial para a Alimentação (PMA), contendo arroz, feijão, óleo e sal, o suficiente para alimentar sua família por um mês. Ela também recebeu redes mosquiteiras, purificadores de água, baldes e água limpa do governo e de outros parceiros da ONU e ONGs, tudo transportado pelo PMA.
Marcela Silvestre
"Tentei ficar em casa o máximo que pude, mas a água logo subiu até os meus joelhos".
Marcela, que trabalhava como representante de vendas na cidade de Vilanculos, viu sua casa encher de água em questão de minutos durante a primeira chuva trazida pelo ciclone Freddy em fevereiro.
"Foi difícil porque eu tinha que segurar minha filha de 3 anos nos braços o tempo todo. Quando a água estava na altura da cintura, tomei a decisão de sair com os meus três filhos, levando o pouco que podíamos nas mãos", diz ela.
A família costumava morar em uma casa grande construída em uma área baixa da cidade. Seu marido, que trabalhava no norte do país, ainda não tinha conseguido encontrar Marcela e os filhos devido ao impacto do ciclone e chuvas subsequentes nas estradas nacionais.
No momento de nosso encontro, Marcela e os três filhos estavam morando de favor na casa de uma amiga. A casa de Marcela ainda estava submersa pelas águas das enchentes até o nível das janelas, mais de um mês após a passagem do ciclone Freddy.
No momento desta entrevista, Marcela conta que estava a sobreviver com o dinheiro economizado com o trabalho das vendas, mas depois do ciclone perdeu seu material de trabalho e ela parou de ser requisitada para novos trabalhos.
"Perdemos tudo, e eu não estou trabalhando agora, então a comida do PMA nos ajudará a não nos preocuparmos com o básico", diz ela.
Ela recebeu a assistência alimentar do PMA pela primeira vez em março.
Gloria Sagawa
"Este ano, meus filhos não conseguiram frequentar a escola porque simplesmente não temos meios para pagar as taxas de matrícula e os materiais escolares deles. Eles estão atualmente no 10º e 12º ano, e é de partir o coração que não pudemos arcar com a educação das crianças".
Em meados de março, Gloria sofreu o impacto devastador do ciclone Freddy pela segunda vez. Este ciclone, que ganhou intensidade no Oceano Índico, desencadeou sua fúria no distrito de Milange, localizado na província central de Zambézia.
Gloria, uma mãe de 45 anos, junto com seus quatro filhos e um neto bebê, estão entre as 60 famílias cujas casas desmoronaram sob a força do ciclone. Eles buscaram refúgio em barracas no pátio de uma escola que servia como centro de acomodação nos arredores de Milange.
Infelizmente, Gloria e sua família não são estranhos à crise climática e à fúria dos ciclones que devastam Moçambique quase que anualmente. Ela compartilhou: "No ano passado, um lado da minha casa desabou, mas meus filhos conseguiram consertá-la. No entanto, este ano, tudo veio abaixo. Apesar de não morarmos perto do rio, o vento e a água levaram embora minha casa".
Gloria acreditava que já estava aprendendo a se preparar para a temporada dos ciclones. Ela costumava cultivar feijão, milho e mandioca em um terreno próximo à sua casa. No entanto, a temporada de ciclones e chuvas do ano passado destruiu tudo, deixando-a com pouca comida. "Muitas pessoas perderam tudo, especialmente aquelas que plantaram perto do rio"
"Este ano, eu esperava evitar a fome cultivando minha comida em áreas mais altas. Plantei milho, e embora tenha sido informada que meu milho sobreviveu ao Freddy, eu não tenho dinheiro para cobrir os custos de transporte para colhê-lo. Além disso, não tenho onde armazenar o milho. Hoje, estamos sem comida, dependentes de doação," diz ela.
"Meu plano é pedir ajuda para o transporte dos meus filhos até a fazenda para podermos colher nosso milho. Dessa forma, podemos tentar armazenar parte da comida na casa do nosso vizinho. Estou buscando ajuda para fazer blocos de barro e reconstruir minha casa. Nenhuma mulher da minha idade deveria ter que suportar essas condições de vida", expressou Gloria com um senso de determinação.
"Apesar das nossas lutas, somos gratos a Deus por termos sido poupados da cólera."
Ana Eduardo
"Nossa casa desmoronou".
Em meados de março, Ana Eduardo, que vive na sede do distrito de Milange, sofreu com a passagem devastadora do ciclone Freddy. Ela sustenta sozinha seus nove filhos.
A família estava vivendo em um abrigo improvisado em uma sala de aula na Escola Primária de Milange, localizada perto da administração do distrito, onde há um total de nove mães e 49 crianças.
"Fomos bem recebidos pela administração da escola, e hoje vamos receber a comida do PMA. Mas precisamos de alguns materiais de construção para voltar e reconstruir nossas casas, somos nove mães sozinhas".
"Tivemos uma criança com malária, mas tivemos medo de pegar cólera porque estamos vivendo tão próximos uns dos outros, e a cólera se espalha rapidamente", diz Ana.
"Ouvimos histórias trágicas de mães que tentaram resistir em suas casas até não aguentarem mais e serem obrigadas a fugir, salvando apenas o mais importante, seus filhos. Quando entregamos alimentos a essas mulheres, vemos seus olhos se iluminarem com esperança, mas precisamos trabalhar para torná-las mais resilientes a longo prazo," diz Antonella D'Aprile, Diretora e Representante do PMA em Moçambique.
A assistência alimentar de emergência ajuda as famílias chefiadas por mulheres a sobreviverem, mas o PMA tem como objetivo ampliar seus programas de apoio aos pequenos agricultores para tornar as famílias mais resilientes e independentes da assistência humanitária a longo prazo.
O PMA já entregou assistência alimentar e nutricional a mais de 230.000 pessoas afetadas pelo ciclone Freddy, graças às contribuições dos doadores: Noruega, Comissão Europeia, UN CERF, Canadá e EUA. Além de transportar vacinas contra a cólera, purificadores de água e redes mosqueteiras, entre outros itens para atender à comunidade humanitária em geral.