Discurso do Presidente de Moçambique na Abertura da Sessão da Comissão de Consolidação da Paz da ONU
Discurso do Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, na Comissão de Consolidação da Paz da ONU
NOVA IORQUE, EUA
- Sua Excelência Ivan Simonovic, Presidente da Comissão das Nações Unidas para a Construção da Paz;
- Senhores Ministros e Vice-Ministros;
- Senhores Membros da Comissão de Consolidação da Paz;
- Convidados Convidados; e
- Senhoras e senhores.
Permitam-me, em primeiro lugar, saudar Sua Excelência Ivan Simonovic, Presidente da Comissão de Consolidação da Paz por organizar este debate dedicado à experiência de Moçambique.
Tem-se que ter em conta que experiência não significa apenas coisas brilhantes, pode ter coisas não brilhantes. Mas não deixa de ser experiência e pode-se aprender com coisas não brilhantes. Nós vamos tentar falar nesse sentido.
Louvamos o papel desta Comissão de Consolidação da Paz no apoio a iniciativas de paz globalmente e particularmente no continente africano.
Pretendemos partilhar a experiência de Moçambique, que consideramos útil para melhorar o trabalho desta Comissão a nível global, mais do que replicar teorias globais sobre o que é e como se faz a paz.
Porque poderíamos ir consultar os livros, mas preferimos aquilo que vivemos em Moçambique.
A história recente de Moçambique é marcada por sucessivos processos de construção da paz. Ontem, abordei um pouco sobre o assunto quando presedi a sessão do Conselho de Segurança e amanhã falarei sobre o tema do "Silenciar das Armas", assim a experiência vai ser recorrente.
Após a independência nacional em 1975, fruto de 10 anos de luta armada, Moçambique sofreu uma agressão militar que durou 16 anos. O conflito culminou com o Acordo Geral de Paz entre o Governo e a RENAMO em 1992 - RENAMO é o partido da oposição que na época movia a guerra, para os que não estão familizarizados com este nome.
Com a implementação da democracia multipartidária, desde as primeiras eleições em 1994, Moçambique teve momentos intercalados de tensão armada em torno dos resultados eleitorais. As disputas foram resolvidas por meio de acordos ocasionais e de um tipo de paz que se mostrava insustentável.
Havia uma tensão, conversava-se e havia um acordo. Parava-se um pouco, a vida continuava e essas agressões continuavam. Então, era uma paz insustentável pela forma como se comportavam.
É por isso que, quando tomei posse como Presidente da República, em janeiro de 2015, defini a paz como a principal prioridade porque entendemos que sem paz não há desenvolvimento.
O processo de paz em curso e a implementação do Acordo de Paz e Reconciliação Nacional de 2019 visam resolver as disputas de forma definitiva.
É um processo guiado por uma abordagem inovadora, que privilegia a confiança, a tolerância, o diálogo, a humildade, a paciência, a determinação, a reconciliação e a apropriação nacional. Sobre esses aspectos farei depois comentários para perceber-se melhor.
Uma das lições mais importantes do nosso processo é que os desafios africanos podem ser resolvidos pelos próprios líderes africanos, da mesma forma que o processo moçambicano está sendo resolvido pelos moçambicanos. O que é necessário é um compromisso firme das respectivas lideranças.
É assim que, juntamente com os dirigentes da Renamo, Afonso Dhlakama e Ossufo Momade, temos liderado directamente o processo de paz, colocando em primeiro lugar os interesses do povo moçambicano.
Este que tem que ser o processo e não o interesse de um e do outro.
Quero reconhecer que tivemos uma boa contribuição da comunidade internacional em nosso processo de paz. E aqui é justo destacar o apoio das Nações Unidas e do Secretário-Geral através do trabalho do seu Enviado Pessoal para Moçambique, Mirko Manzoni.
Estamos orgulhosos dos resultados alcançados nos últimos anos; graças ao empenho de todos os intervenientes.
Senhor Presidente da Comissão,
Permitam-me partilhar com algum detalhe algumas reflexões sobre os pressupostos que têm permitido o sucesso do processo de consolidação da paz em Moçambique, embora acreditemos que possam não ser perfeitos. Mesmo acreditando que não possam ser perfeitas.
A primeira questão que posso me referir é a quetão da apropriação e confiança mútua.
Uma das principais restrições observadas em processos de paz anteriores foi a falta de apropriação nacional.
Sempre era através de intermediários. Havia um problema e, então, tinham que vir gente de fora para sentar e ajudar a resolver a questão. Até mesmo pessoas que não conheciam o assunto bem e tínhamos mesmo que sentar e explicar primeiro qual a era a questão e, às vezes, com teorias pré-concebidas mesmo da escola.
Apesar de termos tido o apoio da comunidade internacional, eu e o ex-líder da Renamo, Afonso Dhlakama, para conseguir a paz nós mesmos concordamos que o processo deveria ser liderado pelos próprios moçambicanos, e que as soluções deveriam ser baseadas na nossa realidade, pois os atores nacionais conhecem melhor o nuances do conflito.
O papel dos atores e parceiros internacionais deve ser de apoio e acompanhamento.
Em todo esse esforço, a construção da confiança foi um fator decisivo para o sucesso das primeiras etapas das negociações. Eu não poderia falar com Dhlakama ou ao contrário se não houvesse confiança. Então, tínhamos que tentar construir certa confiança e acreditar no que o outro diz pode funcionar.
A confiança deve ser continuamente alimentada e mantida para criar raízes.
E a experiência que vivi é que mesmo ficando mais de uma semana sem falar com o Presidente da oposição, via telefone já que ainda vivia na mata, já havia uma descontinuidade, gerava-se um ruído como num ambiente de desconfiança. Então, era preciso sempre conversar mesmo para dizer como está ou como está o seu filho e sua filha. Isto era fundamental porque ele vivia num meio com sua família que estavam do lado de fora onde ele vivia [Serra da Gorongosa].
Durante o processo, aprendemos que mesmo quando as questões parecem impossíveis de resolver, não devemos perder a fé no poder da confiança e do diálogo.
Eu vivi noites em que a outra parte falava que deveríamos parar e que o processo não iria funcionar. Mas a minha tendência nunca foi de jogar a toalha e sim ficar calmo. O mesmo aconteceu do meu lado, se calhar, momentos que por qualquer motivo na agenda eu ficava frio. Isto acontece porque nós estamos a liderar um movimento com vários intervenientes e não só os líderes. Poderia aparecer uma mensagem de uma pessoa do meu lado ou do lado da oposição que não me agrada ou não agrada a ele, e isso cria sombras.
O diálogo permanente, a disponibilidade para ouvir a outra parte, os encontros diretos e o respeito mútuo entre mim e Dhlakama e, posteriormente, entre mim e Momade, evitaram ingerências e perturbações que costumam afetar vários processos de paz.
Posso ser franco e dizer que o ex-líder da RENAMO, Dhlakama, era muito bom comunicador. Eu poderia lhe deixar falar por 30 minutos sem ser interrompido. Muitas vezes, por entender que já tinha ganhado minha confiança e que tinha me convencido. Tinha o poder de ouvi-lo e trazer em poucas palavras sua posição. Ter essa capacidade de ouvir é fundamental, assim como ter paciência de intervir num momento oportuno.
Eu e o Presidente Dhlakama criamos um ambiente de respeito mútuo, e o mesmo continua com o Presidente atual da Renamo, Ossufo Momade. Evitamos ingerências e pertubações dos quais todos os processos de paz sofrem. Num acordo mesmo que seja temporário pode haver pessoas no nível técnico que podem trazer problemas. Nesses momentos de ingerências e pertubações é preciso cabeça fria, porque se não depois tomamos decisões com certo nervosismo.
O ambiente de confiança mútua nos permitiu reduzir a longa lista de demandas para focar em duas questões centrais de interesse para ambas as partes.
No ínicio havia uma lista grande, um leque de reclamações, reinvidicações, e não conseguiríamos cumprir tantas coisas. Mas nesse ambiente de confiança, nós conseguimos diminuir essa lista toda que se resumiu em dois aspectos principais: descentralização e questões militares, incluindo DDR.
O segundo pressuposto é implementar enquanto negociamos. Esse foi uma experiência que Moçambique viveu. Nós estavamos a negociar, mas ao mesmo tempo implementamos algumas questões.
A construção da confiança mútua foi a estratégia de implementação progressiva que facilitou a criação das condições, formal ou informalmente, para a assinatura de acordos formais.
Devido à confiança, muitos elementos do acordo foram implementados antes da assinatura dos acordos.
Por exemplo, as sucessivas tréguas que anunciaram a suspensão dos ataques militares, que foram declaradas antes de acordos formais e oficiais, não exigiram nenhum acordo.
Posso citar um exmpplo. Já estávamos no final do ano e havia guerra, as pessoas não podiam passar do norte para o sul, porque no centro havia ataques. As pessoas precisavam de ir visitar suas famílias e, simplesmente, via telefone, conseguimos acertar antes do natal e antes do final do ano uma trégua. Os ataques pararam e tivemos uma trégua por 15 dias. As pessoas celebraram as festas em paz. Não houve nenhum acordo escrito, apenas confiança e foi comprido.
O acordo político, submetido à Assembleia da República em 2018, que resultou na Proposta de Emenda à Constituição aprovada por unanimidade, aprofundou ainda mais a nossa confiança no processo de paz e abriu caminho à assinatura do Acordo de Maputo em 2019.
Daqueles acordos pequenos e memorandos que celebramos, nós, duas partes, chegamos a conclusão que faríamos o acordo. Eu como presidente da república propus a emenda da lei e ela foi aprovada por unanimidade pelas duas bancadas, do governo e da oposição. Isto reforçou a confiança um no outro e foi fundamental.
Dos processos de paz anteriores em Moçambique, aprendemos a lição de que se deve ter em conta, em processos desta natureza, a necessidade da desmobilização total do ex-combatentes.
A desmobilização ficará ainda mais completa quando o processo de fixação da pensão for concluído, agora aguardando o fechamento da última base. Das 16 bases da RENAMO, foram encerradas 15. E 94% dos guerrilheiros desmobilizados. Então, falta uma base e, logo que a base terminar, começaremos o processo de fixação de pensões.
O terceiro pressuposto é a adaptação.
O processo de paz em Moçambique teve muitos desafios. Existia a necessidade de muita flexibilidade e agilidade por parte das partes em seus procedimentos, cumprimento de prazos, estabelecimento de relacionamento com diferentes estruturas e stakeholders do processo. Era necessária a colaboração de todos e um pensamento estratégico para superar as dificuldades.
A morte inesperada do líder da oposição, Afonso Dhlakama, em maio de 2018, e a eclosão da pandemia da COVID-19, em março de 2020, criaram grandes dificuldades num momento crítico e delicado do processo de paz.
No entanto, mesmo com a morte de Dhlakama, conseguimos manter Moçambique no caminho da paz graças ao empenho e confiança mútua das partes. Estavmos num caminho, roteiro de negociação, e ele ficou doente. Tentamos ajudar, mas morreu ali mesmo na mata em maio de 2018.
As expectativas ficaram murchas. Vai se continuar o processo de paz ou vai voltar a guerra. Foi um nervosismo. Fizemos um funeral condigno. Mas a RENAMO conseguiu se reencontrar com o novo dirigente.
O DDR em Moçambique é um processo sistemático e progressivo que é supervisionado por uma Comissão de Assuntos Militares e dois grupos técnicos conjuntos. Todas estas estruturas são compostas e dirigidas por cidadãos moçambicanos e os dois partidos têm igual representação.
Também temos a socialização de informação como componente importante.
Uma das nossas estratégias neste processo consiste em manter todos os intervenientes, permanentemente informados, todos os intervenientes, nomeadamente os cidadãos moçambicanos, homens, mulheres, crianças e jovens atualizados sobre o andamento do processo de paz.
Em nosso envolvimento direto com os cidadãos em todo o país, informamos sobre os passos dados e o sucesso do processo de paz.
Mantivemos reuniões com as principais partes interessadas, incluindo partidos políticos, líderes religiosos, líderes provinciais e locais, sociedade civil e comunidade internacional.
A inclusão nos níveis local e comunitário permite que as pessoas se apropriem do processo de paz. Consolida as conquistas e garante o apoio das lideranças locais na reintegração dos ex-guerrilheiros e estimula uma cultura de reconciliação nas comunidades. Os líderes locais são eles que ajudam os ex-combatentes na reintegração para não haver estigmização
A inclusão também se aplica a outros níveis. Por exemplo, recentemente nomeamos um líder de um partido de oposição como nosso Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário junto à Santa Sé, o Estado do Vaticano. Queremos construir uma narrativa que cada moçambicano possa contribuir para a reconciliação e construção da Nação.
Este exercício vai continuar, porque queremos construir a narrativa de que cada cidadão pode contribuir par ao futuro de Moçambique.
Desde outubro de 2017, alguns distritos da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, têm sido alvo de ataques terroristas.
Temos partilhado informação com líderes da região da SADC à luz do princípio de “Soluções Africanas para Problemas Africanos”. A nossa estratégia combina a cooperação multilateral através da SADC - SAMIM e a cooperação bilateral com o Ruanda e inclui o envolvimento da população local, a vigilância dos movimentos inimigos e o apoio às forças de defesa e segurança.
Graças aos esforços conjuntos dessas forças, a estabilidade foi gradualmente restaurada, a vida está voltando ao normal e as pessoas estão voltando gradualmente para suas áreas de origem.
No entanto, o terrorismo não acabou em Moçambique. Apesar de enfraquecidos, os terroristas continuam ativos e buscam inventar novas formas de atuação, tentando conquistar corações e mentes da população local, portanto, este é o momento de intensificar nossas operações de contra-ataque.
Senhoras e senhores,
Aqui está uma demonstração de que quando os países africanos trabalham juntos e bilateralmente, eles podem encontrar e implementar soluções para enfrentar qualquer tipo de ameaça à paz e à segurança. O modelo a que nos referimos não exclui outro tipo de intervenções que se afigurem oportunas e a concretizar oportunamente.
As Nações Unidas, em particular, através da Comissão de Consolidação da Paz, devem continuar a apoiar o processo de paz em Moçambique, bem como os esforços de combate ao terrorismo, uma vez que se têm revelado menos dispendiosos e com resultados mais rápidos em comparação com outras intervenções noutros locais, alguns dos quais ainda estão em andamento.
Para a erradicação total e definitiva dos bolsões remanescentes de terroristas, torna-se urgente fornecer apoio em termos de recursos financeiros e técnicos para fortalecer a capacidade dos parceiros bilaterais e multilaterais que estão implantados no terreno.
Igualmente importante é a necessidade de aumentar a assistência aos esforços de reconstrução de Cabo Delgado e à estratégia de desenvolvimento integrado da região norte destinada a erradicar a pobreza, o desemprego e outros factores que possam atrair pessoas para as fileiras do terrorismo, especialmente entre os jovens.
Concluindo, acredito que há muitas lições importantes que podem ser aprendidas com a consolidação do processo de paz em Moçambique, incluindo as falhas. A construção da paz é um processo contínuo e não pode ser considerado um produto acabado.
A paz deve ser continuamente cultivada com compaixão, tolerância, inclusão, humildade e reconciliação.
Queremos a paz construída respeitando os direitos humanos, onde a riqueza é compartilhada equitativamente.
Para isso, é necessário que na nossa busca pela paz prevaleça a construção da confiança e o diálogo permanente.
Como país, continuamos comprometidos com uma paz duradoura e é por isso que apresentamos nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas para poder compartilhar nossa humilde experiência
Agradecemos mais uma vez a oportunidade dada a Moçambique de partilhar a nossa experiência, e estamos sempre disponíveis para continuar este diálogo em prol da paz em todo o mundo.
Obrigado.