MUNIQUE, Alemanha - Enquanto secretário-geral das Nações Unidas, passo muito do meu tempo a conversar com líderes mundiais e a manter-me a par das tendências globais.
Está claro para mim que vivemos um momento decisivo nas relações internacionais.
A tomada de decisão a nível internacional é atormentada por impasses – e na sua origem reside um paradoxo fundamental.
Por um lado, muitos dos líderes mundiais de hoje reconhecem as nossas ameaças comuns – o covid-19, o clima, o desenvolvimento não regulamentado de novas tecnologias. Todos concordam que é necessário agir. No entanto, esse entendimento comum não é acompanhado por uma ação comum.
Na verdade, as divisões continuam a aprofundar-se.
São visíveis em todo o lado: na distribuição injusta e desigual de vacinas; num sistema económico mundial manipulado contra os pobres; na resposta totalmente inadequada à crise climática; na tecnologia digital e numa indústria de media que lucra com a divisão; e numa crescente instabilidade e conflito em todo o mundo.
Então, se o mundo reconhece o diagnóstico destes problemas comuns, porque não é eficiente na sua resolução?
Identifico duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar, porque a política externa muitas vezes se torna numa projeção da política interna.
Enquanto ex-primeiro-ministro, sei que, apesar das boas intenções, os assuntos internacionais podem ser desviados pela política interna. Os interesses nacionais subjacentes podem facilmente superar um interesse global maior.
Esse impulso é compreensível, mesmo que seja mal orientado nos casos em que a solidariedade é do interesse próprio de um país.
As vacinas são um excelente exemplo.
Todos percebem que um vírus como o covid-19 não respeita fronteiras nacionais. Precisamos de uma vacinação universal para reduzir o risco do surgimento de novas e mais perigosas variantes que afetarão todos, em todos os países.
Em vez de dar prioridade a vacinas para todos através de um plano global de vacinação, os governos agiram para proteger a sua população. Mas isso é apenas meia parte de uma estratégia.
É claro que os governos devem garantir a proteção da sua população. No entanto, se não trabalharem em simultâneo para vacinar o mundo, os planos nacionais de vacinação podem tornar-se inúteis à medida que surgem e se espalham novas variantes.
Em segundo lugar, muitas das instituições ou estruturas mundiais de hoje estão desatualizadas ou simplesmente enfraquecidas e as reformas necessárias são impedidas por divisões geopolíticas.
Por exemplo, a autoridade da Organização Mundial da Saúde não está mais próxima do que é necessário para coordenar a resposta a pandemias mundiais.
Ao mesmo tempo, as instituições internacionais com mais poder ou estão paralisadas pela divisão – como o Conselho de Segurança – ou são antidemocráticas – como muitas das nossas instituições financeiras internacionais.
Em suma – a governação mundial está a falhar exatamente no momento em que o mundo deveria unir-se para resolver problemas globais.
Precisamos de agir em conjunto pelos interesses nacionais e mundiais, na proteção de bens públicos mundiais essenciais, tais como a saúde pública e um clima habitável, que apoiem o bem-estar da humanidade.
Essas reformas são essenciais se quisermos cumprir aspirações comuns para os nossos objetivos coletivos de paz, desenvolvimento sustentável, direitos humanos e dignidade para todos.
Este é um exercício difícil e complexo que deve ter em consideração as questões de soberania nacional.
Mas a inação não é uma opção aceitável. O mundo precisa desesperadamente de mecanismos internacionais mais eficazes e democráticos que possam resolver os problemas das pessoas.
Como a pandemia nos ensinou, os nossos destinos estão interligados. Quando deixamos alguém para trás, corremos o risco de ficarmos todos para trás. As regiões, os países e as pessoas mais vulneráveis são as primeiras vítimas desse paradoxo da política mundial. Mas todas as pessoas, em todos os lugares, ficam estão diretamente ameaçadas.
A boa notícia é que podemos fazer algo em relação aos nossos desafios globais.
Os problemas criados pela humanidade podem ser resolvidos pela humanidade.
Em setembro passado, publiquei um relatório sobre estas questões. A Nossa Agenda Comum é um ponto de partida; um guião que pretende unir o mundo para enfrentar esses desafios de governação e revigorar o multilateralismo para o século XXI.
A mudança não será fácil, nem acontecerá da noite para o dia. Mas podemos começar a encontrar áreas de consenso e a avançar na direção do progresso.
Este é o nosso maior teste, porque muito está em jogo.
Já estamos a ver as consequências. À medida que as pessoas começam a perder a confiança na competência das instituições, também correm o risco de perder a fé nos valores subjacentes a essas instituições.
Em todos os cantos do mundo, vemos uma erosão da confiança e temo uma degradação dos valores que partilhamos.
Injustiça, desigualdade, desconfiança, racismo e discriminação estão a lançar sombras escuras em todas as sociedades.
Devemos reforçar a dignidade e a decência humanas e dar respostas às ansiedades das pessoas.
Perante as crescentes ameaças interligadas, o enorme sofrimento humano e os riscos partilhados, temos a obrigação de as denunciar e agir para apagar o fogo.