Activistas comunitários lutam contra as uniões prematuras em Moçambique
26 novembro 2020
Kutenga, organização da sociedade civil, sensibiliza as comunidades para prevenir a violência baseada no género é apoiada pela Iniciativa Spotlight.
Chicualacuala, Moçambique – Selma* tinha 17 anos de idade quando a sua mãe lhe disse que uma outra família a esperava como esposa na província de Gaza, no Sul de Moçambique. O acordo estava feito. Selma juntou-se à sua nova família e engravidou pouco tempo depois.
Certo dia, Selma recebeu uma visita de activistas comunitários, Maria* e Francisco*, que trabalham com a Kutenga, uma organização apoiada pela Iniciativa Spotlight. Estes tinham sido informados sobre casos de uniões prematuras, incluindo o da Selma, enquanto sensibilizavam comunidades vizinhas sobre a prevenção da violência baseada no género.
Maria e Francisco decidiram agir, mas nunca imaginaram que seria tão difícil.
“Falámos com a família do marido e com os líderes locais sobre a lei de prevenção e combate às uniões prematuras [com menores de 18 anos] e denunciámos o caso à polícia", disse Maria.
Estes activistas comunitários também explicaram o impacto devastador que a união poderia ter na vida da Selma, desde expô-la à violência e a riscos de saúde, até comprometer o seu futuro e sonhos.
De acordo com dados globais do FNUAP, as uniões prematuras são frequentemente seguidas por uma gravidez, mesmo quando a rapariga ainda não está física ou mentalmente preparada. Segundo o Censo Populacional de 2017, Moçambique não é excepção: no país, 56 por cento das raparigas de 17 anos casadas, já têm filhos. Nos países em desenvolvimento, as complicações da gravidez e do parto são a principal causa de morte entre as adolescentes com idades entre os 15 e os 19 anos. Além disso, sabe-se que casar antes dos 18 anos aumenta o risco de violência por um parceiro íntimo em 22 por cento.
A pandemia da COVID-19 tem acentuado as desigualdades pré-existentes entre homens e mulheres. Tem também exacerbado alguns dos principais factores motivadores das uniões prematuras, tais como o acesso limitado à educação, a gravidez precoce e a pobreza. Relatórios de todo o mundo revelam um aumento alarmante em todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas, incluindo as uniões prematuras, nestes tempos sem precedentes.
"Encontrámos muita resistência", afirmou Francisco.
No entanto, os activistas persuadiram a família do marido a devolver a Selma aos pais. Também prometeram visitá-la pouco tempo depois, para verificar se Selma tinha realmente regressado.
Passada uma semana, Maria e Francisco sentiram-se encorajados ao encontrar a Selma na casa dos pais. Contudo, logo após a visita, os activistas foram informados pelos vizinhos de que ela só tinha regressado durante aquele dia, por instrução de ambas as famílias, tendo já voltado para a casa do marido.
COMPREENDER OS DIREITOS DAS RAPARIGAS
"[A família do marido] não queria deixar [Selma] ir, porque ela ajudava nas tarefas domésticas", disse Francisco. Por outro lado, a família da Selma estava relutante em aceitá-la de volta.
Ambas as famílias e os líderes locais foram chamados à esquadra. "Quando interrogados, tornou-se claro que nenhum deles realmente compreendia que casar uma rapariga menor de 18 anos é ilegal", disse a Maria.
É por isso que o trabalho dos activistas na sensibilização das comunidades sobre os direitos humanos e as leis que protegem as mulheres e as raparigas da violência e das práticas nocivas como as uniões prematuras, é tão importante.
Finalmente, as famílias entenderam que tinham violado os direitos da Selma e decidiram fazer o que estava certo: cancelar a união.
Selma voltou para a casa dos pais, e a polícia encerrou o caso.
Hoje, Selma está feliz por estar de volta a casa. "Nós visitamo-la com frequência. Ela é bem apoiada pela sua família", disse Francisco. A família do marido concordou em apoiá-la e ao bebé financeiramente, e ela está a receber aconselhamento pelos serviços de protecção social. A Selma está também a ganhar competências para desenvolver o seu próprio negócio, através de uma intervenção de empoderamento económico das mulheres apoiada pela Iniciativa Spotlight.
"Os pais da Selma entenderam a importância de combater as uniões prematuras e agora ajudam-nos a informar outras famílias", acrescentou Francisco.
MUDANDO COMPORTAMENTOS
No ano passado, a Assembleia da República de Moçambique aprovou uma nova lei que criminaliza as uniões prematuras (com menores de 18 anos). Este foi o culminar de anos de esforços por parte do Governo, da sociedade civil e de organizações baseadas nos direitos, que estavam preocupados com o facto de quase metade das raparigas em Moçambique casar antes dos 18 anos – uma das taxas de uniões prematuras mais elevadas do mundo.
Sob a liderança do Ministério do Género, Criança e Acção Social, o programa está a trabalhar em colaboração com as instituições públicas e a sociedade civil para divulgar esta lei junto das comunidades de todo o país.
Um dos principais grupos visados são os líderes locais. Estes actuam como guardiões das normas sociais e são poderosos aliados na desconstrução de práticas nocivas nas suas comunidades.
Só este ano, as intervenções apoiadas pela Iniciativa Spotlight já capacitaram mais de 300 líderes locais sobre a nova lei, impulsionando uma mudança de comportamento que levou ao resgate de 11 raparigas de uniões prematuras.
*os nomes foram alterados
A Kutenga é uma organização da sociedade civil que sensibiliza as comunidades para prevenir a violência baseada no género nos distritos de Xai Xai, Chongoene e Chicualacuala, na Província de Gaza. A organização faz parte do Consórcio Contra a Violência Sexual, uma parceria entre sete organizações de defesa dos direitos das mulheres que trabalham para prevenir a violência sexual e baseada no género no âmbito da Iniciativa Spotlight, em Moçambique.
A Iniciativa Spotlight é uma parceria global entre a União Europeia (UE), as Nações Unidas (ONU) e governos anfitriões, para eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas. Em Moçambique, a Iniciativa é liderada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS). É implementada durante um período de quatro anos (2019-2022) com um orçamento de 40 milhões de dólares, disponibilizado pela UE. A iniciativa foca-se nas áreas prioritárias de combate à violência sexual e baseada no género e às uniões prematuras, bem como na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e raparigas.