“A língua portuguesa representa a riqueza da diversidade”, diz António Guterres
Secretário-Geral das Nações Unidas fala à ONU News sobre o Dia Mundial da Língua Portuguesa.
NOVA IORQUE, EUA - Este 5 de maio é o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Para celebrar a data, o secretário-geral concedeu uma entrevista à ONU News como o primeiro convidado de uma nova fase da produção de TV do canal: o Podcast ONU News, que se concentrará em entrevistas sobre temas relevantes, semanalmente, em todas as nossas plataformas.
António Guterres falou ainda sobre suas lembranças de encontros de trabalho e conversas com líderes internacionais que falam a sua língua materna.
Para o secretário-geral, a língua portuguesa é um bem comum, e os países que falam o idioma devem seguir apostando no multilateralismo e na construção da paz no mundo.
Ele respondeu a perguntas do público sobre mudança climática e igualdade de gênero.
Acompanhe a íntegra da conversa com Eleutério Guevane e Monica Grayley, da ONU News.
ONU News: Está no cargo há seis anos, problemas e desafios não param. E no meio de tudo isso, tem tempo para descarregar um pouco os problemas do mundo e pensar em língua e leitura?
António Guterres: Eu sou um leitor obsessivo sobretudo de História. Portanto, todas as noites, antes de dormir, já na cama, entre uma hora e uma hora e meia, consagro sempre a uma leitura, que não tem a ver com os dossiês ou com os relatórios das Nações Unidas, mas tem a ver com livros que compro, alguma ficção, livros de vários tipos, mas sobretudo de história.
ON: Que autores que o têm influenciado ou inspirado?
AG: Para ser ter ação política é muito útil, sobretudo ação política ao nível do secretário-geral das Nações Unidas, que lida com todo o mundo, é muito útil ter tido a oportunidade de ler o mais possível a história. Para compreender as dinâmicas que muitos países hoje têm e que têm muito a ver com o seu passado. E, nesse sentido, eu penso que as minhas lições de história foram muito importantes para me dar capacidade em muitas situações negociais de compreender as motivações profundas dos meus interlocutores, de compreender as razões de fundo que levam a que os problemas sejam o que são hoje, em vários países. E por isso, a ter uma intervenção mais eficaz e mais rigorosa.
ON: Secretário-geral, o mundo da política tem as suas anedotas. Tony Blair disse que conversava com os seus pares, na França, em francês. Há pouco tempo, Angela Merkel conversava em russo com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. E Jean Chrétien, do Canadá, disse que sempre conversava com a Rainha, em seus encontros de trabalho, em francês, porque – segundo ele-, ela “detestava o inglês dele”. Existe algum momento, na sua carreira, que o senhor pode conversar com alguém, um grande líder internacional na sua própria língua?
AG: Mas, com certeza. Tenho falado com dirigentes de países africanos de língua portuguesa. Tenho falado com dirigentes brasileiros, timorenses em português. Isso é sempre, para mim, um enorme prazer. Recordo, com uma memória vivíssima, as conversas que tive com o presidente Fernando Henrique, com o presidente Lula. Recordo também as conversar que tive, ainda há tão pouco tempo, com o presidente Lourenço, de Angola, que está a desempenhar um papel fantástico na criação de condições para a paz, na República Democrática do Congo. Portanto, há muitas situações em que eu tenho a sorte de poder falar com o meu interlocutor numa língua, que ambos conhecemos, portanto não deve haver mal-entendido. (Risos)
ON: Exato. Isso é muito importante na política e em qualquer relação. Mas não houve nenhum estrangeiro com o qual o senhor pudesse conversar e que soubesse português, por acaso?
AG: Às vezes, há situações extraordinárias em que, normalmente não ao nível de liderança, mas por exemplo embaixadores de países que estiveram em Portugal, ou estiveram no Brasil, ou estiveram em Angola ou em Moçambique e que aprenderam a falar português, mas são situações, relativamente, raras.
ON: Vamos agora falar sobre algumas bandeiras que o senhor tem defendido. Uma delas é a promoção da igualdade de gênero, mas também a participação dos jovens em processos de decisão. E a gente vai falar de um jovem que quer fazer uma pergunta para o senhor. Pergunte ao SG. Ele vai aparecer aqui na tela e ele está em Newark, Nova Jérsei.
(Jovem pergunta o que ele está fazendo para combater o aquecimento global)
AG: Bem. Esta é uma prioridade fundamental da ação das Nações Unidas. As Nações Unidas não só são a sede em que todos os países se juntam, a Conferência dos Estados-Partes para as suas reuniões anuais em que, nós desejaríamos que fossem muito mais longas, em matéria de ação climática, mas as Nações Unidas têm tido, creio que hoje todos o reconhecem, um papel liderante no pôr em cima da mesa, com clareza, a agenda que é necessário cumprir. Uma agenda drástica à aceleração da redução das emissões. Em que fazemos exigências muito fortes a todos os países, nesse sentido, mas não só aos países. Também à indústria nos mais diversos setores, o nosso combate pelas energias renováveis para que nos livremos, progressivamente, dos combustíveis fósseis que têm causado uma parte substancial do aquecimento do planeta.
A nossa intervenção é em favor da justiça climática requerendo dos países mais desenvolvidos que cumpram os seus compromissos em relação aos países em desenvolvimento. Batemos muito para que aumente o financiamento a chamada adaptação, ou seja, aos investimentos que os países devem fazer para aumentar a capacidade de resistência das suas infraestruturas, da resiliência de suas populações ao impacto climático. Tivemos, recentemente, uma grande vitória com a aprovação do Fundo para o chamado Loss and Damage, Perdas e Danos, portanto, digamos, esta é uma área, que penso, poder dizer com verdade, temos estamos na vanguarda das posições mais determinantes, no sentido de obrigar àqueles que têm que tomar decisões: os Estados, as empresas, obrigá-los a fazer o que é preciso para que nós possamos derrotar as mudanças climáticas. E, infelizmente, ainda estamos longe de conseguir. Infelizmente, Estados, empresas e, muitas vezes, a sociedade têm andado muito mais lentamente do que seria necessário.
ON: E muito importante também para os países de língua portuguesa porque todos eles têm saída para o mar.
ON: Vamos a um deles, a Guiné-Bissau continuando a nossa viagem e falar de uma outra bandeira que tem levantado. Há uma jovem, que se chama Jovania, que quer lhe fazer uma pergunta.
(Jovem pergunta como as mulheres podem se preparar para se tornar secretária-geral da ONU tendo em conta que até agora só houve homens)
AG: Eu acho que a primeira coisa a fazer é que as mulheres se candidatem e que os países candidatem mulheres nas próximas eleições, que ocorrerão daqui a três anos e meio, um pouco mais daqui a três anos e meio. Mas há uma coisa que nós estamos a fazer nas Nações Unidas e que eu acho muito importante. As Nações Unidas tinham um predomínio de homens nos seus órgãos de direção. Hoje, nos 170 altos dirigentes das Nações Unidas, há mais mulheres que homens. Uma pequena diferença, mas há mais mulheres que homens. E nos nossos representantes nos países, os chamados coordenadores residentes, da ação das Nações Unidas nos diversos países, há mais uma mulher que o número de homens nessas funções. E isto está também, cada vez mais, a refletir-se quando olhamos para a estrutura. Ainda não estamos lá, em paridade, mas temos vindo, cada ano, a aumentar 1% a porcentagem das mulheres. E, espero que o meu objetivo, que é atingir a paridade em 2028, eu já cá não estarei, mas que tudo faremos enquanto eu cá estiver, para garantir que esse objetivo é um objetivo perfeitamente alcançável.
ON: Mas certamente, o senhor já plantou a semente. Secretário-geral: a nossa última pergunta. Quando a gente fala em língua portuguesa, cada um idealiza uma coisa. Para uns, é a identidade deles. Para outros é a pátria, para lembrar de Fernando Pessoa. Para alguns pode ser o mar, Vergílio Ferreira: “Da minha língua vê-se o mar”. O que é a língua portuguesa para o senhor?
AG: Eu acho que é a riqueza da diversidade. Eu estou ouvi-la a falar em português do Brasil, que é muito diferente no som do português que eu falo. Mas é isto que é a nossa riqueza comum. A língua portuguesa está em quatro continentes e é uma ponte de união entre mulheres e homens de todo o mundo e que podem utilizar a língua portuguesa para incrementar o diálogo e a cooperação internacional e para serem todos eles fatores de paz porque paz é o bem mais precioso e infelizmente é um bem que estamos longe de dar por adquirido neste momento.
ON: Secretário-geral, por último, algo mais a dizer a este mundo lusófono nos quatro cantos do planeta?
AG: Eu faço meu apelo para que todos os países de língua portuguesa continuem a sua aposta forte no multilateralismo. A sua aposta forte no cumprimento da Carta das Nações Unidas. A sua aposta forte no cumprimento da lei internacional e a sua aposta forte em transformar o nosso mundo num mundo mais justo sobretudo do ponto de vista econômico e financeiro. Hoje, vemos os países em desenvolvimento com dramáticos problemas por causa das desigualdades criadas pelas injustiças, que profundamente impregnam o nosso sistema econômico e financeiro. E tendo países, nos vários continentes, países mais desenvolvidos, países menos desenvolvidos, penso que os países de língua portuguesa estão numa posição ótima de ser uma ponte que aproxime os vários Estados da compreensão de que é preciso fazermos algumas reformas profundas para que haja mais justiça e mais igualdade no mundo.
ON: E Feliz Dia Mundial da Língua Portuguesa!
AG: Obrigado. Feliz Dia!